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“SE A JUSTIÇA FOSSE FORTE E INDEPENDENTE,AS COISAS NÃO
FICARIAM ASSIM”
Há um quarto de século, Miguel Cadilhe, ministro das Finanças
de Portugal, autor de cinco orçamentos de Estado, deu-me a oportunidade de
fazer uma entrevista que durou até hoje,25 anos mais tarde.
20 minutos antes do “Jornal das 9” ser emitido, o ministro mandou
avisar-me que não apareceria. Decidi manter as perguntas, e interroga-lo “in
absentia”. O ministro, logo que pudesse, responderia. Esta semana, a VISÃO
desafiou-nos para um reencontro. No qual nasceu a entrevista que se segue.
Continua a pensar que Portugal
desperdiçou a presença da troika para proceder a uma reforma estrutural do
Estado?
Penso que a troika poderia, e deveria, ter levado Portugal a
fazer a grande reforma estrutural do Estado, mas os políticos portugueses não
foram por aí. Não usaram a grande oportunidade de o país estar, todo ele,
recetivo a fazer essa mudança. A melhor prova de que o Estado tem de ser
‘reconceituado’, e tem de ser objeto de uma profunda reforma, é o nível
insustentável da dívida pública.
É uma oportunidade
que se perde. Havia muita gente que
acreditou que «agora isto ia ser a sério».
As medidas que estão tomadas são intercalares, temporárias.
Nós precisamos de medidas estruturais, daquelas que têm efeito permanente e são
tomadas para ficarem.
Considera que Portugal,
no estado em que se encontra, estaria recetivo a mudanças maiores?
Portugal precisa de mudanças estruturais, mudanças que vão à
raiz dos problemas que temos. Na área do Estado ou da Administração Pública o
nosso problema é despesa pública a mais. Para a pagar precisamos de mais
impostos ou de mais dívida. Mas quer os impostos, quer a dívida, já estão em
níveis excessivos. Em termos de esforço fiscal, somos o segundo país mais
exigente de toda a zona euro.
O senhor disse que
Portugal se ficava pelos preliminares…
Isso foi a propósito do dito guião da reforma do Estado, que
veio tarde e mal. Quando nós estamos num ato importante da vida, dizemos que os
preliminares são recomendáveis, mas, aqui, os preliminares deviam ter sido em
2011. A seguir, deveria ter aparecido o ato essencial. Este guião foi
determinado pela motivação eleitoral.
Ou seja, mesmo os
preliminares são desajeitados…
São, são. [risos] Os preliminares, o tal guião, parece que
foi preparado por quem não tem experiência ou, então, quis usar de astúcia para
encher o tempo pré-eleitoral. Mas o país rapidamente concluiu que o guião não
era aquilo que deveria ser feito. Neste momento, nós devíamos ter a reforma do
Estado, em grande parte, feita – a reforma estrutural, aquela mudança que é para
valer por muito tempo. E não temos.
Pensa que essa reforma
ainda será feita mais para a frente, ou não haverá condições para irmos por aí?
Não sei quem a vai fazer, mas tem que ser feita. Numa
conferência, em Serralves, comparei o Grande Reformador em Portugal àquela
árvore do romance A Um Deus Desconhecido, do John Steinbeck. Por muito que
pensemos que, desta vez, o reformador vai estar aí, ele acaba por não aparecer
ou por sair antes do tempo. Durante estes anos troikianos acabámos por não ter
o Grande Reformador e o país está muito precisado disso. Admito que muito
tarde, com muito atraso possa aparecer a grande reforma do Estado, depois de a
troika sair, mas já não neste mandato. É tarde demais. Uma grande reforma do
Estado implica sempre algumas medidas impopulares e não estou a ver os partidos
políticos a fazê-la em vésperas de eleições.
Por causa disso pagamos
mais…
Pagamos mais e as medidas temporárias incidem mais sobre as
pessoas que estão mais à mão, digamos. São muitas, mas têm pouco poder reivindicativo
e pouca influência junto do poder, mas claro que contam mais para a massa da
despesa pública. Por enquanto, temos os tais sacrifícios temporários, mas
quando vier a reforma estrutural do Estado teremos sacrifícios definitivos.
Tem dito que há iniquidade
nestes sacrifícios.
A equidade está ferida porque os sacrifícios estão mal
distribuídos. É muito difícil lidar com o ajuste da distribuição de sacrifícios
porque a grande massa da despesa pública está nas remunerações da função
pública, no Estado Social, nos juros da dívida pública – nos juros não podemos
mexer. Só se incumpríssemos e disséssemos «não pagamos», mas ninguém do Governo
pensa assim. E eu também não penso assim. A nossa dívida pública deve ser
cumprida, eu costumo usar a expressão «honrar a dívida pública», mas também
digo que é preciso fazer a renegociação honrada da dívida pública. Dizemos que
pagamos o capital, mas os juros têm de ser mais baixos e o tempo tem de ser
mais longo. A renegociação honrada é uma proposta que já faço há uns tempos.
O que, aliás, acontece,
sobretudo da parte de quem tem a preocupação de pagar! Quem não se
preocupa com essas coisas, geralmente,
não paga. É o “logo se vê”…
Tal e qual. E o banqueiro está habituado a ver entrar no
banco uma pessoa, seja chefe de uma empresa ou de família, dizendo «estou a
passar uma aflição, preciso de tempo. Mas quero honrar a minha dívida». É isso
que eu proponho que Portugal faça. Admito que isso venha a ser feito, se é que
não está a ser realizado nos bastidores. Isto deve ser executado no recato das
instituições. O homem que vai falar com o banqueiro também não vai a bradar que
precisa de mais tempo para pagar a dívida. Parece que o Governo português tem
conseguido algumas melhorias de juro e algumas melhorias de prazo, designadamente
junto das instituições europeias, mas penso é que isso ainda é muito pouco. Tem
que ser bastante mais.
Em 2011, o Dr. chegou a
defender uma taxa única de 4% sobre a riqueza. Na sua opinião, esse imposto
visaria dois objetivos essenciais: tornar mais justa a distribuição dos
sacrifícios e tributar quem mais tem, isentando aqueles que têm menos posses.
Com a carga fiscal atual, este imposto ainda seria comportável?
É um imposto bendito porque melhora a distribuição dos
sacrifícios, mas é um imposto maldito porque piora a confiança, que já não está
muito bem. Propus que essa tributação fosse sobre a parte superior da pirâmide
dos titulares da riqueza, isentando três quartos ou dois terços das famílias
portuguesas.
É claro que esse imposto tem algumas dificuldades
operacionais, reconheço que sim, mas nada de inultrapassável. O ponto mais
delicado é, de facto, a questão das famílias ricas. Do ponto de vista
ideológico não tenho nada que me leve a incomodar essas famílias, eu próprio
reconheço que seria tributado. Não é por preconceito ou enviesamento político
ou ideológico, é porque acho que, em Portugal, os sacrifícios pesam muito sobre
funcionários públicos, pensionistas, desempregados. As pessoas precisavam de
ver um sinal de que também são chamados a contribuir aqueles que estão no topo
da pirâmide de riqueza. Dir-se-á que, pelo IRS, as pessoas de maior rendimento
estão a contribuir, mas o rendimento é uma coisa e o património é outra. Também
sugeria que a receita desse imposto, que seria único, não se repetiria, seria
exclusivamente para a amortização de dívida pública.
Quando foi ministro foi
alvo de uma campanha como pouca gente sofreu em Portugal. Em termos
comparativos, não estranhou, agora, a delicadeza que houve com o seu colega
Vítor Gaspar? Foi muito mais bem tratado do que o senhor, no seu tempo.
O Vítor Gaspar tinha o guarda-chuva da troika. Apesar de
tudo, as pessoas achavam que ele tinha de fazer aquilo que estava no memorando
com a troika. No meu caso, eu não tinha troika nenhuma a proteger-me. Além
disso, eu meti-me em várias reformas estruturais ao mesmo tempo. Na altura, até
dizia que quem semeia reformas colhe tempestades.
Ainda teria sido
possível ir mais longe nas suas reformas?
Admito que não. Aliás, eu já tinha alguns colegas do Governo
contra – contra é uma forma de dizer – a intensidade reformista que o ministro
das Finanças estava a introduzir nas políticas do Governo. Muito dificilmente
eu poderia ter continuado naquele ritmo de reformas. Alguns dos ataques que me
fizeram foram verdadeiramente indecentes. Outros foram poderosos, mas
subterrâneos.
O senhor disse que, se Vítor Gaspar alguma vez saísse,
seria substituído por um Gaspar II. A ministra que lá está é o Gaspar número 2?
Ou tanto fazia ser ela como qualquer outra pessoa porque a política seria
sempre a mesma?
Eu queria dizer que a linha de política, do ponto de vista
mais substancial, não poderia ter grandes alterações. Vítor Gaspar foi
substituído pela senhora ministra e acho que posso dizer que, do ponto de vista
da qualidade, determinação e de consistência, temos um Gaspar II.
Isso é um elogio?
É um elogio, sim. Discordo dela em alguns assuntos, tal como
discordei de Vítor Gaspar, mas acho que a ministra conseguiu substituir, rapidamente,
a credibilidade de Vítor Gaspar pela credibilidade dela. São dois tipos
diferentes de presença e, portanto, de crédito. Mas acho que está bem no lugar
em que está.
Recordo-me da
consideração que o Dr. tinha pelo seu secretário de Estado do Tesouro, o Dr.
Oliveira e Costa. Em 2009, teve que chefiar as equipas que deslindaram todo
aquele imbróglio da SLN e do BPN. Imagino que tenha sido doloroso para si.
Foi doloroso e surpreendente, no pior sentido do termo.
Esperava encontrar muitas coisas mal, mas nunca daquela dimensão e com aquela
extensão e profundidade. Envolveu várias pessoas que foram, para mim, razão de
mágoa, digamos. Além disso, implicou um esforço muito grande por parte da minha
equipa para enfrentar os problemas e, em pouco tempo, dar-lhes solução. Por
mais conhecidas que fossem as pessoas, por mais chegadas, ou mesmo amigas que
fossem, nós tínhamos um dever que era superior a tudo, as coisas como estavam
tinham de ser levadas à justiça. Por princípio, por razões de ética, e por
razões de ordem legal, também. O administrador de uma empresa não pode calar as
coisas que nós encontrámos. Tem o dever, e a obrigação legal, de comunicar a
quem de direito, como fizemos. Foram os piores 4 meses da minha vida do ponto
de vista profissional. Não tem comparação nenhuma. Não comparo com aqueles anos
em que eu, como ministro das finanças, fui atacado, era outra coisa. Era o
desafio profissional de conseguir resolver os problemas e de ter de chamar à
pedra várias pessoas. Ao mesmo tempo, tinha de lidar com a instituição Banco de
Portugal que nós esperávamos que nos ajudasse. O BdP dizia que nós éramos uma
equipa em quem confiavam, nós éramos parte da solução e não do problema mas, às
tantas, pôs-nos como parte do problema porque não nos ajudou. A nacionalização
veio, contrariando a nossa opinião e a nossa proposta. Foi um erro. Nós
dissemos isso na altura e os anos que se seguiram mostraram que a
nacionalização foi um pesadíssimo erro. A nacionalização do BPN não precisava
de ter acontecido. Nós tínhamos uma proposta para salvar o banco, deixavam-nos
tentar e, se não conseguíssemos, depois, então, davam a solução radical ao
banco, que podia ser a nacionalização e a integração na CGD, por exemplo. A
ajuda que dessem à nossa equipa para tentarmos aplicar o nosso plano não se
perderia, já faria parte da solução que mais tarde tivessem de adotar, se nós
não fossemos bem-sucedidos. Atenção, nós dávamos o nosso nome, nós dávamos a
cara pela nossa solução. Eu acho que, em 2008, houve um erro de avaliação, quer
da parte do ministro das Finanças, quer da parte do Governador do BdP. O Banco
de Portugal, como depois se comprovou, tinha uma responsabilidade muito grande
nas falhas de supervisão ao longo de anos, que permitiram que o BPN chegasse
onde chegou.
Há quase uma omertà, um
dever de silêncio, acerca dos culpados, em Portugal. Eu recordo-me de ler
palavras suas em que apontava Sócrates, Teixeira dos Santos e Constâncio como
alguns dos principais responsáveis. Lembro-me que falava na Expo 98, nos
estádios de futebol, nos submarinos… No entanto, põem-se todos no mesmo saco e
parece que todos tiveram a mesma responsabilidade. Concorda com esta posição de
que ninguém teve culpa?
Não é muito humanamente correto - politicamente correto não é
de certeza - estarmos a proclamar coisas deste género. Quando Portugal chega ao
ponto a que chegou, em 2011, e entra a troika, eu pergunto se não há pessoas
para serem chamadas à responsabilidade, não é só à responsabilidade política,
mas de foro judicial. Pergunto se a PGR, com toda a sua independência, não
deveria iniciar uns processos de chamada à responsabilidade de alguns
políticos. Pelo menos para que o país dissesse «não, a culpa não morre
solteira». A melhor forma de não responsabilizar ninguém é chamar todos à
pedra. Eu acho que o sistema de justiça, mais uma vez, tem sido relativamente
fraco. Se fosse forte, e verdadeiramente independente, as coisas não ficariam
assim, sem responsabilização. O caso dos submarinos é um exemplo de manual.
Condena-se na Alemanha…
Mas cá não há corrupção passiva. No meu tempo, quando eu era
ministro das finanças, fui atacado por tanta coisa, se tivessem comprado os
submarinos o ministro das finanças teria de dizer que sim, o ministério da
defesa teria de ser o autor da proposta mas, às tantas, eu próprio também teria
apanhado com um submarino na cabeça, no meio daqueles ataques todos.
Essa clarificação faz
falta para as pessoas acreditarem.
As instituições da República, que falharam ao longo de anos,
na tal vigilância das finanças públicas, também deviam olhar para si próprias e
retirar daí ilações e lições para o futuro. Não sei se alguns quadros legais
dessas instituições precisam de ser revistos, reforçados. Não sei se é, também,
uma questão de dotação de meios, recursos humanos e outros, ou de orçamento…
Mas que elas falharam, falharam. Se estivessem muito atentas, e se tivessem
chamado a atenção, a República não teria chegado ao que chegou.
***
A ENTREVISTA SEM
ENTREVISTADO EM DIRECTO NA TV
Não apareceu naquele
dia porque, imagino, tinha coisas mais importantes para fazer do que ir ao
telejornal do segundo canal da RTP. A mim, permitiu-me uma graça que lhe
agradeço e que durou até hoje…
Uma graça que fez com muita classe, com muita categoria. Na
altura eu dizia que tinha sido a melhor entrevista que me fizeram.
Teve a amabilidade de
dizer isso, mas eu só tive o trabalho de deixar as questões. Infelizmente, não
me lembro delas, nem encontrei nenhum registo disso.
Que pena…
Eu fiquei contente por
outro motivo. É que eu fiz isso a um ministro, que não era um ministro
qualquer, era o ministro das finanças, e ninguém me despediu! Está a ver como
ninguém tem responsabilidades!?
[risos] A falta foi minha, eu deveria ter ido. O seu gesto
foi de grande inteligência e de muita classe. A cadeira estava vazia e o
jornalista começa a fazer as perguntas. Eu recordo-me de ter pensado, e de ter
comentado com várias pessoas, que tinha sido uma categoria de entrevista que o
Joaquim Letria me tinha feito. É um gesto raro, sabe? Podia ter aproveitado
para amesquinhar a pessoa que lhe faltou no último momento, dizer-lhe uns
adjetivos que eram apropriados, podiam ser mais ou menos justos, mas eram
apropriados, mas não. Esteve muito acima disso. Com um sorriso que lhe é muito
próprio, pode estar a entalar o entrevistado mas tem sempre um sorriso, ainda
hoje pôs esse sorriso várias vezes…
É o mesmo! [risos]
Olhava para aquela cadeira vazia, que não deveria estar
vazia, e sentia-me responsável por isso, claro que sim. Mas sem baixar o nível
conseguiu dar-me uma lição, a mim e a outros políticos.
Os políticos aprendem
pouco. Recordo-me que as minhas palavras finais foram «deixo-lhe aqui as
perguntas, quando o Sr. Ministro entender que pode e tem tempo para responder
terá a oportunidade de o fazer». Não esperava que me desse o prazer de um
reencontro como este, depois de tantos anos.
São 40 anos?
Eu creio que foi em 87
ou 88… O motivo da entrevista era a apresentação de um Orçamento de Estado.
Aí uns 25 anos! Caramba, quarenta também não podia ser! Há 40
foi o 25 de Abril! [risos]