segunda-feira, 24 de março de 2014

Entrevista a Miguel Cadilhe para a «Visão» (20 Mar 14)


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“SE A JUSTIÇA FOSSE FORTE E INDEPENDENTE,AS COISAS NÃO FICARIAM ASSIM”

Há um quarto de século, Miguel Cadilhe, ministro das Finanças de Portugal, autor de cinco orçamentos de Estado, deu-me a oportunidade de fazer uma entrevista que durou até hoje,25 anos mais tarde.
20 minutos antes do “Jornal das 9” ser emitido, o ministro mandou avisar-me que não apareceria. Decidi manter as perguntas, e interroga-lo “in absentia”. O ministro, logo que pudesse, responderia. Esta semana, a VISÃO desafiou-nos para um reencontro. No qual nasceu a entrevista que se segue.
Continua a pensar que Portugal desperdiçou a presença da troika para proceder a uma reforma estrutural do Estado?

Penso que a troika poderia, e deveria, ter levado Portugal a fazer a grande reforma estrutural do Estado, mas os políticos portugueses não foram por aí. Não usaram a grande oportunidade de o país estar, todo ele, recetivo a fazer essa mudança. A melhor prova de que o Estado tem de ser ‘reconceituado’, e tem de ser objeto de uma profunda reforma, é o nível insustentável da dívida pública.

É uma oportunidade que  se perde. Havia muita gente que acreditou que «agora isto ia ser a sério».

As medidas que estão tomadas são intercalares, temporárias. Nós precisamos de medidas estruturais, daquelas que têm efeito permanente e são tomadas para ficarem.

Considera que Portugal, no estado em que se encontra, estaria recetivo a mudanças maiores?

Portugal precisa de mudanças estruturais, mudanças que vão à raiz dos problemas que temos. Na área do Estado ou da Administração Pública o nosso problema é despesa pública a mais. Para a pagar precisamos de mais impostos ou de mais dívida. Mas quer os impostos, quer a dívida, já estão em níveis excessivos. Em termos de esforço fiscal, somos o segundo país mais exigente de toda a zona euro.

O senhor disse que Portugal se ficava pelos preliminares… 

Isso foi a propósito do dito guião da reforma do Estado, que veio tarde e mal. Quando nós estamos num ato importante da vida, dizemos que os preliminares são recomendáveis, mas, aqui, os preliminares deviam ter sido em 2011. A seguir, deveria ter aparecido o ato essencial. Este guião foi determinado pela motivação eleitoral.

Ou seja, mesmo os preliminares são desajeitados…

São, são. [risos] Os preliminares, o tal guião, parece que foi preparado por quem não tem experiência ou, então, quis usar de astúcia para encher o tempo pré-eleitoral. Mas o país rapidamente concluiu que o guião não era aquilo que deveria ser feito. Neste momento, nós devíamos ter a reforma do Estado, em grande parte, feita – a reforma estrutural, aquela mudança que é para valer por muito tempo. E não temos.

Pensa que essa reforma ainda será feita mais para a frente, ou não haverá condições para irmos por aí?

Não sei quem a vai fazer, mas tem que ser feita. Numa conferência, em Serralves, comparei o Grande Reformador em Portugal àquela árvore do romance A Um Deus Desconhecido, do John Steinbeck. Por muito que pensemos que, desta vez, o reformador vai estar aí, ele acaba por não aparecer ou por sair antes do tempo. Durante estes anos troikianos acabámos por não ter o Grande Reformador e o país está muito precisado disso. Admito que muito tarde, com muito atraso possa aparecer a grande reforma do Estado, depois de a troika sair, mas já não neste mandato. É tarde demais. Uma grande reforma do Estado implica sempre algumas medidas impopulares e não estou a ver os partidos políticos a fazê-la em vésperas de eleições.

Por causa disso pagamos mais…

Pagamos mais e as medidas temporárias incidem mais sobre as pessoas que estão mais à mão, digamos. São muitas, mas têm pouco poder reivindicativo e pouca influência junto do poder, mas claro que contam mais para a massa da despesa pública. Por enquanto, temos os tais sacrifícios temporários, mas quando vier a reforma estrutural do Estado teremos sacrifícios definitivos.

Tem dito que há iniquidade nestes sacrifícios.

A equidade está ferida porque os sacrifícios estão mal distribuídos. É muito difícil lidar com o ajuste da distribuição de sacrifícios porque a grande massa da despesa pública está nas remunerações da função pública, no Estado Social, nos juros da dívida pública – nos juros não podemos mexer. Só se incumpríssemos e disséssemos «não pagamos», mas ninguém do Governo pensa assim. E eu também não penso assim. A nossa dívida pública deve ser cumprida, eu costumo usar a expressão «honrar a dívida pública», mas também digo que é preciso fazer a renegociação honrada da dívida pública. Dizemos que pagamos o capital, mas os juros têm de ser mais baixos e o tempo tem de ser mais longo. A renegociação honrada é uma proposta que já faço há uns tempos.

O que, aliás, acontece, sobretudo da parte de quem tem a preocupação de pagar! Quem não se preocupa  com essas coisas, geralmente, não paga. É o “logo se vê”…

Tal e qual. E o banqueiro está habituado a ver entrar no banco uma pessoa, seja chefe de uma empresa ou de família, dizendo «estou a passar uma aflição, preciso de tempo. Mas quero honrar a minha dívida». É isso que eu proponho que Portugal faça. Admito que isso venha a ser feito, se é que não está a ser realizado nos bastidores. Isto deve ser executado no recato das instituições. O homem que vai falar com o banqueiro também não vai a bradar que precisa de mais tempo para pagar a dívida. Parece que o Governo português tem conseguido algumas melhorias de juro e algumas melhorias de prazo, designadamente junto das instituições europeias, mas penso é que isso ainda é muito pouco. Tem que ser bastante mais.

Em 2011, o Dr. chegou a defender uma taxa única de 4% sobre a riqueza. Na sua opinião, esse imposto visaria dois objetivos essenciais: tornar mais justa a distribuição dos sacrifícios e tributar quem mais tem, isentando aqueles que têm menos posses. Com a carga fiscal atual, este imposto ainda seria comportável?

É um imposto bendito porque melhora a distribuição dos sacrifícios, mas é um imposto maldito porque piora a confiança, que já não está muito bem. Propus que essa tributação fosse sobre a parte superior da pirâmide dos titulares da riqueza, isentando três quartos ou dois terços das famílias portuguesas.

É claro que esse imposto tem algumas dificuldades operacionais, reconheço que sim, mas nada de inultrapassável. O ponto mais delicado é, de facto, a questão das famílias ricas. Do ponto de vista ideológico não tenho nada que me leve a incomodar essas famílias, eu próprio reconheço que seria tributado. Não é por preconceito ou enviesamento político ou ideológico, é porque acho que, em Portugal, os sacrifícios pesam muito sobre funcionários públicos, pensionistas, desempregados. As pessoas precisavam de ver um sinal de que também são chamados a contribuir aqueles que estão no topo da pirâmide de riqueza. Dir-se-á que, pelo IRS, as pessoas de maior rendimento estão a contribuir, mas o rendimento é uma coisa e o património é outra. Também sugeria que a receita desse imposto, que seria único, não se repetiria, seria exclusivamente para a amortização de dívida pública.

Quando foi ministro foi alvo de uma campanha como pouca gente sofreu em Portugal. Em termos comparativos, não estranhou, agora, a delicadeza que houve com o seu colega Vítor Gaspar? Foi muito mais bem tratado do que o senhor, no seu tempo.

O Vítor Gaspar tinha o guarda-chuva da troika. Apesar de tudo, as pessoas achavam que ele tinha de fazer aquilo que estava no memorando com a troika. No meu caso, eu não tinha troika nenhuma a proteger-me. Além disso, eu meti-me em várias reformas estruturais ao mesmo tempo. Na altura, até dizia que quem semeia reformas colhe tempestades.

Ainda teria sido possível ir mais longe nas suas reformas?

Admito que não. Aliás, eu já tinha alguns colegas do Governo contra – contra é uma forma de dizer – a intensidade reformista que o ministro das Finanças estava a introduzir nas políticas do Governo. Muito dificilmente eu poderia ter continuado naquele ritmo de reformas. Alguns dos ataques que me fizeram foram verdadeiramente indecentes. Outros foram poderosos, mas subterrâneos.

O senhor  disse que, se Vítor Gaspar alguma vez saísse, seria substituído por um Gaspar II. A ministra que lá está é o Gaspar número 2? Ou tanto fazia ser ela como qualquer outra pessoa porque a política seria sempre a mesma?

Eu queria dizer que a linha de política, do ponto de vista mais substancial, não poderia ter grandes alterações. Vítor Gaspar foi substituído pela senhora ministra e acho que posso dizer que, do ponto de vista da qualidade, determinação e de consistência, temos um Gaspar II.

Isso é um elogio?

É um elogio, sim. Discordo dela em alguns assuntos, tal como discordei de Vítor Gaspar, mas acho que a ministra conseguiu substituir, rapidamente, a credibilidade de Vítor Gaspar pela credibilidade dela. São dois tipos diferentes de presença e, portanto, de crédito. Mas acho que está bem no lugar em que está.

Recordo-me da consideração que o Dr. tinha pelo seu secretário de Estado do Tesouro, o Dr. Oliveira e Costa. Em 2009, teve que chefiar as equipas que deslindaram todo aquele imbróglio da SLN e do BPN. Imagino que tenha sido doloroso para si.

Foi doloroso e surpreendente, no pior sentido do termo. Esperava encontrar muitas coisas mal, mas nunca daquela dimensão e com aquela extensão e profundidade. Envolveu várias pessoas que foram, para mim, razão de mágoa, digamos. Além disso, implicou um esforço muito grande por parte da minha equipa para enfrentar os problemas e, em pouco tempo, dar-lhes solução. Por mais conhecidas que fossem as pessoas, por mais chegadas, ou mesmo amigas que fossem, nós tínhamos um dever que era superior a tudo, as coisas como estavam tinham de ser levadas à justiça. Por princípio, por razões de ética, e por razões de ordem legal, também. O administrador de uma empresa não pode calar as coisas que nós encontrámos. Tem o dever, e a obrigação legal, de comunicar a quem de direito, como fizemos. Foram os piores 4 meses da minha vida do ponto de vista profissional. Não tem comparação nenhuma. Não comparo com aqueles anos em que eu, como ministro das finanças, fui atacado, era outra coisa. Era o desafio profissional de conseguir resolver os problemas e de ter de chamar à pedra várias pessoas. Ao mesmo tempo, tinha de lidar com a instituição Banco de Portugal que nós esperávamos que nos ajudasse. O BdP dizia que nós éramos uma equipa em quem confiavam, nós éramos parte da solução e não do problema mas, às tantas, pôs-nos como parte do problema porque não nos ajudou. A nacionalização veio, contrariando a nossa opinião e a nossa proposta. Foi um erro. Nós dissemos isso na altura e os anos que se seguiram mostraram que a nacionalização foi um pesadíssimo erro. A nacionalização do BPN não precisava de ter acontecido. Nós tínhamos uma proposta para salvar o banco, deixavam-nos tentar e, se não conseguíssemos, depois, então, davam a solução radical ao banco, que podia ser a nacionalização e a integração na CGD, por exemplo. A ajuda que dessem à nossa equipa para tentarmos aplicar o nosso plano não se perderia, já faria parte da solução que mais tarde tivessem de adotar, se nós não fossemos bem-sucedidos. Atenção, nós dávamos o nosso nome, nós dávamos a cara pela nossa solução. Eu acho que, em 2008, houve um erro de avaliação, quer da parte do ministro das Finanças, quer da parte do Governador do BdP. O Banco de Portugal, como depois se comprovou, tinha uma responsabilidade muito grande nas falhas de supervisão ao longo de anos, que permitiram que o BPN chegasse onde chegou.

Há quase uma omertà, um dever de silêncio, acerca dos culpados, em Portugal. Eu recordo-me de ler palavras suas em que apontava Sócrates, Teixeira dos Santos e Constâncio como alguns dos principais responsáveis. Lembro-me que falava na Expo 98, nos estádios de futebol, nos submarinos… No entanto, põem-se todos no mesmo saco e parece que todos tiveram a mesma responsabilidade. Concorda com esta posição de que ninguém teve culpa?

Não é muito humanamente correto - politicamente correto não é de certeza - estarmos a proclamar coisas deste género. Quando Portugal chega ao ponto a que chegou, em 2011, e entra a troika, eu pergunto se não há pessoas para serem chamadas à responsabilidade, não é só à responsabilidade política, mas de foro judicial. Pergunto se a PGR, com toda a sua independência, não deveria iniciar uns processos de chamada à responsabilidade de alguns políticos. Pelo menos para que o país dissesse «não, a culpa não morre solteira». A melhor forma de não responsabilizar ninguém é chamar todos à pedra. Eu acho que o sistema de justiça, mais uma vez, tem sido relativamente fraco. Se fosse forte, e verdadeiramente independente, as coisas não ficariam assim, sem responsabilização. O caso dos submarinos é um exemplo de manual.

Condena-se na Alemanha…

Mas cá não há corrupção passiva. No meu tempo, quando eu era ministro das finanças, fui atacado por tanta coisa, se tivessem comprado os submarinos o ministro das finanças teria de dizer que sim, o ministério da defesa teria de ser o autor da proposta mas, às tantas, eu próprio também teria apanhado com um submarino na cabeça, no meio daqueles ataques todos.

Essa clarificação faz falta para as pessoas acreditarem.

As instituições da República, que falharam ao longo de anos, na tal vigilância das finanças públicas, também deviam olhar para si próprias e retirar daí ilações e lições para o futuro. Não sei se alguns quadros legais dessas instituições precisam de ser revistos, reforçados. Não sei se é, também, uma questão de dotação de meios, recursos humanos e outros, ou de orçamento… Mas que elas falharam, falharam. Se estivessem muito atentas, e se tivessem chamado a atenção, a República não teria chegado ao que chegou.





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A ENTREVISTA SEM ENTREVISTADO EM DIRECTO NA TV


Não apareceu naquele dia porque, imagino, tinha coisas mais importantes para fazer do que ir ao telejornal do segundo canal da RTP. A mim, permitiu-me uma graça que lhe agradeço e que durou até hoje…

Uma graça que fez com muita classe, com muita categoria. Na altura eu dizia que tinha sido a melhor entrevista que me fizeram.

Teve a amabilidade de dizer isso, mas eu só tive o trabalho de deixar as questões. Infelizmente, não me lembro delas, nem encontrei nenhum registo disso.

Que pena…

Eu fiquei contente por outro motivo. É que eu fiz isso a um ministro, que não era um ministro qualquer, era o ministro das finanças, e ninguém me despediu! Está a ver como ninguém tem responsabilidades!?

[risos] A falta foi minha, eu deveria ter ido. O seu gesto foi de grande inteligência e de muita classe. A cadeira estava vazia e o jornalista começa a fazer as perguntas. Eu recordo-me de ter pensado, e de ter comentado com várias pessoas, que tinha sido uma categoria de entrevista que o Joaquim Letria me tinha feito. É um gesto raro, sabe? Podia ter aproveitado para amesquinhar a pessoa que lhe faltou no último momento, dizer-lhe uns adjetivos que eram apropriados, podiam ser mais ou menos justos, mas eram apropriados, mas não. Esteve muito acima disso. Com um sorriso que lhe é muito próprio, pode estar a entalar o entrevistado mas tem sempre um sorriso, ainda hoje pôs esse sorriso várias vezes…

É o mesmo! [risos]

Olhava para aquela cadeira vazia, que não deveria estar vazia, e sentia-me responsável por isso, claro que sim. Mas sem baixar o nível conseguiu dar-me uma lição, a mim e a outros políticos.

Os políticos aprendem pouco. Recordo-me que as minhas palavras finais foram «deixo-lhe aqui as perguntas, quando o Sr. Ministro entender que pode e tem tempo para responder terá a oportunidade de o fazer». Não esperava que me desse o prazer de um reencontro como este, depois de tantos anos.

São 40 anos?

Eu creio que foi em 87 ou 88… O motivo da entrevista era a apresentação de um Orçamento de Estado.

Aí uns 25 anos! Caramba, quarenta também não podia ser! Há 40 foi o 25 de Abril! [risos]